quarta-feira, dezembro 30, 2009

Nem por sonhos ...

“[...] Há muito tempo, quando se estreou o filme A Quadrilha Selvagem, de Sam Peckinpah, houve uma jornalista que levantou a mão na conferência de imprensa e perguntou num tom francamente indignado: «Por que razão insiste em mostrar tanto sangue nos seus filmes?». Ernest Borgnine, um dos actores presentes, encarregou-se de responder, com um ar perplexo. «Minha senhora, alguma vez viu alguém levar um tiro e não deitar sangue?». [...]

«E que farei se Miu não me aceitar?», escrevera Sumire quase no fim do primeiro texto. «Pensarei nisso quando chegar a altura. Viram alguma vez alguém levar um tiro e não ficar cheio de sangue? Vou afiar a minha faca, [...]

Veio-me à memória uma coisa que ela deixara escrito: « Então o que deve fazer uma pessoa se quiser evitar a colisão? É difícil? Não, nada disso. Se encararmos a questão de um ponto de vista puramente lógico, é fácil. A resposta está nos sonhos, para de lá nunca mais sair. Passar o resto da vida a sonhar. [...] Acabámos por nunca descobrir o que acontecera a Sumire. Como dizia Miu, evaporara-se como fumo. [...] A percepção não passa da soma dos nossos mal-entendidos.”

Haruki Murakami, Sputnik, meu amor,

editora casa das letras, 7 edição, 2002


Gostava de saber o que nós, comuns mortais, fazemos aos nossos sonhos. Será que os guardamos na mesma gaveta que os papeis que já não interessam, mas que apesar de não termos a coragem de os deitar fora vão-se acumulando e acumulando no tempo e espaço? Acho que sonhar é assim. Nunca é fácil o seu processo, mas quando se inicia vai acumulando e acumulando. Nunca sei muito bem o que esperar dos meus sonhos. Sinto-me tal Alice no País das Maravilhas. Vou de história em história, caminhado pelas aventuras do desconhecido, desvendado enigmas, concertando existências, mas sem nunca sair de dentro do espelho do meu imaginário. Gostava que na vida real as certezas habitassem com a mesma leveza que nos sonhos. Penduro cada sonho na sua respectiva corda e coloco-os a secar ao sol. De vez em vez atiro-me de cabeça em cada um deles. Não é o Adormecer que custa, é o Acordar que mata. Coexistem em nós, fatalmente ligados, o que sabemos, o que não sabemos e o que imaginamos. Por uma questão de conveniência, a maioria das pessoas colocam barreiras entre os três. Nos sonhos não é preciso estabelecer grandes distinções entre as coisas pois cada sonho exige uma coisa diferente de nós. Não é que com isto possamos perder uma perna ou um braço cada vez que sonhemos, mas para cada sonho não realizado o efeito em nós é o mesmo que perder um membro, aliás é muito mais interior, doloroso e demorado. A ser assim, acabarei, lenta mas inexoravelmente, por me perder. Todas as manhãs do mundo, todos os crepúsculos, acabarão por me despojar, pedaço atrás de pedaço, da minha identidade, e não tardará que a minha própria existência se dilua na corrente do tempo e que eu acabe por ficar cada vez mais reduzida. Provavelmente muitos de voces vão achar que tudo isto não passa de um cliché ou um deja vú, mas isso é porque um dia sonharam ser alguém e hoje ainda não o são.

"A percepção não passa da soma dos nossos mal-entendidos.”

3 comentários:

Anónimo disse...

Liiiiiindo!!!!!!

Luna disse...

Oi. Desculpa a invasão mas adorei o texto. Tenho imensa curiosidade em saber o que fazemos aos nossos sonhos e não sei se isso irá alguma vez ser descoberto, muitos é melhor nem lembra que os tivemos outros é como se quiséssemos lá voltar e voltar a reviver, guardá-los em caixas e quando o quiséssemos voltar a revelo era só abrir a tal caixa, acho que teria muitas caixas ainda por abrir.
No entanto acho que é melhor não sabermos para onde eles vão.
beijos

Bruno Smith Lopes Ribeiro disse...

Eu achei o texto muito bom também ;)

Um Abraço fica com Deus ^^